Estudo sobre a “Reforma na Gestão Pública do Chile – Educação”

Contextualização

Nesse trabalho pretendemos analisar a reforma recente da educação chilena, desencadeada pela promulgação da Lei 20.501/2011 (artigo 34º – “Calidad y Equidad de la Educación”). Aqui, recorreremos amiúde às cinco dimensões técnicas abordadas no artigo “Reformas de Gestão Pública: o que a América Latina tem a aprender com a OCDE[1]”, notadamente Gestão do Gasto Público, Gestão de Recursos Humanos, Estrutura do setor público, Prestação alternativa de serviços e Reformas do lado da demanda. 

Entender qual a contribuição do “Sistema de Alta Direção Pública” (SADP), do “Conselho de Alta Direção Pública” (CADP), da “Direção Nacional do Serviço Civil” (DNSC) e das “Assessorias Externas” para o sistema educacional chileno compreende o foco dessa análise. 

Aspectos da educação pública chilena

As transformações do sistema público de educação no Chile têm sua gênese a partir de meados da década de 70. Historicamente o Chile sempre apresentou uma tendência de administração “centralista”, cabendo ao governo central (federal) grande parte da arrecadação de tributos, elaboração e implementação das políticas públicas, além da manutenção dos serviços. Esse cenário foi modificado em 1975, com a promulgação da “Ley Orgánica de Administración Financiera del Estado” (Decreto-Lei 1263/1975)[2], que, de maneira sucinta, estabelecia as seguintes determinações:

  • Definia claramente as responsabilidades a serem assumidas pelos entes subnacionais;
  • Normatizava as funções e competências das esferas regionais e locais, concentrando a provisão de serviços sociais nos municípios e direcionando aos entes regionais a distribuição dos recursos;
  • Promovia forte interação entre mecanismos específicos de financiamento local/subnacional.

            Essa legislação reorganizou territorialmente o país, dando origem a 13 “regionais” (equivalente ao que chamamos de “região”), 51 “províncias” (equivalente ao que chamamos de “estado”) e 318 “comunas” (equivalente ao que chamamos de “municípios”). Esse processo teve reflexos diretos na educação, ratificando, no período entre 1976 a 1989, uma progressiva municipalização das escolas. Na década de 80 surgiu uma nova figura nas redes municipais – as escolas subvencionadas (ou “sostenedor privado” conforme consta na Lei). Trata-se de um estabelecimento privado de ensino, porém custeado com recursos públicos. A ideia consistia em oferecer duas formas de escola gratuita: a municipal e a “privada subvencionada”. A lógica, nesse caso, tem relação com os princípios de descentralização fiscal e eficiência econômica, partindo-se do princípio de que uma maior competição entre escolas acarretaria incentivos naturais para melhora na gestão do sistema. Desde então, escolas municipais e subvencionadas têm convivido, representando, respectivamente, 68% e 27% do total de matrículas do ensino básico (os 5% restantes referem-se às escolas particulares). 

            Com a introdução da Lei 19.882/2003, estabeleceu-se um novo modus operandi, pautado em um amplo processo de redefinição dos processos de gestão de recursos humanos (dirigentes de primeiro e segundo escalão). Essa legislação, por conseguinte, possibilitou anos mais tarde a promulgação da Lei 20.501/2011, que lançou as bases institucionais de um novo espaço de direção na educação chilena, ao conjugar vontade política e gestão por resultados. A partir desse contexto, desenhou-se uma nova forma de se recrutar, selecionar, desenvolver e avaliar servidores públicos de alta direção, ao promover critérios ancorados na competência técnica, no mérito, na flexibilidade, na confiança e na transparência. 

Aqui, cabe uma observação, baseada nos estudos do autor espanhol Rafael Jiménez Asencio[3], em que classifica a direção pública segundo três modelos: Modelo Corporativo, Modelo de Politização e Modelo Gerencial (Profissional). No Modelo Corporativo a função de direção encontra origem dentro da própria burocracia, ou seja, os servidores de alto escalão provêm da própria organização (órgão público), com regras de ingresso amparadas no mérito acadêmico, delimitando uma carreira hierarquizada e rígida (estratificada nos planos de carreira). No Modelo de Politização, qualquer cidadão pode ocupar um cardo de direção, não importando a capacidade profissional do “postulante”. Trata-se de um processo marcado pela discricionariedade e flexibilidade de nomeação. Não obstante, no Modelo Gerencial (Profissional) observamos uma estrutura organizacional descentralizada, a existência de regras formais de gestão de pessoas e a definição das competências gerenciais requeridas para os cargos. Nesse ambiente, eficiência e eficácia surgem como premissas. Portanto, podemos identificar o “SADP”, em voga no Chile desde 2003, como um Modelo Gerencial (Profissional).

Reformas Gerenciais do Estado

Elaborar políticas públicas responsivas e implementá-las tempestivamente impõe à gestão pública um desafio ainda maior. Na América Latina tem-se combinado reformas administrativas mais pontuais com reformas de políticas públicas específicas, dado o leque de divergências políticas verificadas. Paralelamente ao intenso processo de redemocratização, vivenciado principalmente a partir dos anos 80, diversos autores referem-se a pouca maturidade político-institucional dessas democracias. Nesse sentido, os países da região, notadamente Brasil, Chile e Argentina, ainda carecem de instituições que proporcionem maior legitimidade aos seus governantes/dirigentes.

Tendo como arcabouço teórico as reformas gerenciais perpetradas pelo Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia (ainda nos anos 80), constatam-se iniciativas semelhantes de países latino-americanos (a partir dos anos 90), principalmente Chile e Brasil, que buscavam introduzir na administração pública mecanismos de profissionalização da gestão: menos discricionários, mais flexíveis, mais transparentes, mais responsivos às demandas sociais e dotados de maior eficiência.     

Em vista disso, analisaremos agora como o “Sistema de Alta Direção Pública” (e a consequente implantação da Lei 20.501/2011) impactou a educação chilena, utilizando-se das cinco dimensões técnicas mencionadas no início do trabalho:

Em relação à Gestão do Gasto e Transparência:

Hoje o Chile, como grande parte dos países da América Latina, utiliza os conceitos do “orçamento-programa” nas finanças públicas. No tocante ao gerenciamento da educação chilena, a “contratualização por resultados” também é viabilizada por essa técnica contábil, na medida em que custos, receitas e métricas de desempenho podem ser diligentemente aferidos e disponibilizados à sociedade civil. Ao final de cada período letivo (conforme pactuado no “convênio de desempenho”), metas e resultados são confrontados, possibilitando a apuração da remuneração variável. Ademais, os Diretores de Escola e Chefes de Administração da Educação Municipal (equivalente a uma “Direção Regional de Educação” no Brasil) necessitam informar os resultados obtidos, não só aos respectivos superiores hierárquicos como também à comunidade escolar. O site do Ministério da Educação é um importante difusor dessas informações. Nesse contexto, as famílias podem encontrar uma rica fonte de dados, proporcionando maior conscientização acerca da vida escolar dos educandos.

– Em relação à Gestão de Recursos Humanos:

As redes de educação pública nos países desenvolvidos têm se notabilizado, acima de tudo, por uma boa gestão dos seus recursos humanos. Selecionar, avaliar, capacitar, remunerar e manter bons professores e gestores educacionais constitui-se em ingredientes chave na promoção de um processo de ensino e aprendizagem exitoso. Profissionais capacitados e motivados são fundamentais para o sucesso escolar, e isso tem sido percebido sobremaneira pelos países melhores ranqueados no PISA (Program of International Students Assessement). Ao se estudar e ponderar os fatores chave de sucesso que nortearam as políticas públicas praticadas nesses países, detecta-se uma preocupação legítima com a melhoria contínua da qualificação e desempenho de professores e gestores, que se traduz em ações de cunho prático, com reflexos diretos na sala de aula.

Esse parece ser o espírito da Lei 20.501/2011, ao incorporar idoneidade, mérito, transparência e igualdade como pilares na gestão de pessoas. Na realidade, a implantação na rede pública ocorreu a partir de 2014 (portanto três anos após a promulgação da referida Lei), devido às fases precedentes de articulação e estruturação junto às esferas municipais. Foram então definidas as seguintes premissas:

  • Melhorar a qualidade e a equidade da educação pública;
  • Otimizar a administração municipal em seu conjunto;
  • Contratar Diretores e Chefes selecionados através de concursos transparentes e com base no mérito;
  • Otimizar o desempenho dos líderes educativos lastreado em metas claras e avaliação permanente;
  • Assegurar uma remuneração justa para Diretores e Chefes da educação municipal;
  • Atrair os melhores líderes para implementar os projetos educativos.

            Para que essas premissas se concretizem, existe cinco macro etapas que direcionam o processo de contratação:

  • Elaboração do escopo e definição do perfil do cargo pela autoridade política solicitante, em conjunto com o CNSC;
  • Convocação pública – o DNSC, com base no perfil do cargo, publica a “convocatoria pública” (equivalente ao nosso edital/chamamento público), utilizando-se de sites e mídia impressa;
  • Análise dos requisitos legais – o DNSC averigua a documentação encaminhada pelos postulantes, assim como a aderência desta aos requisitos legais;
  • Análise curricular – uma consultoria externa especializada (credenciada previamente pelo DNSC) em seleção de pessoas avalia o currículo dos candidatos bem como checa os antecedentes;
  • Comissão qualificadora (composta pelos representantes da autoridade política solicitante e CNSC, além de um diretor escolar escolhido por sorteio) – avalia os candidatos pré-selecionados pela consultoria externa e realizam entrevistas com os mesmos. Por conseguinte, definem-se os nomes que integrarão a lista final (geralmente de três a cinco candidatos), sendo então encaminhada à autoridade política solicitante para escolha e nomeação da contratação.

            Existe uma diferença entre o processo de contratação do Chefe da Educação Municipal (destacado acima) e o referente ao Diretor de escola. No caso do Diretor, a comissão qualificadora é composta pelo representante do CNSC, pelo Chefe da Educação do Município e por um docente escolhido por sorteio. Tal fato deve-se à posição de hierarquia existente entre Diretor e Chefe da Educação Municipal. Nesse caso, o Chefe da Educação Municipal responde por um grupo de escolas. Assim, o dirigente escolhido firma um convênio de desempenho por cinco anos, com avaliação anual junto ao seu superior imediato.

            Esse arranjo proporciona uma convergência entre gestão e política, pois fomenta práticas gerenciais baseadas no mérito e na confiança, sem excluir os atores políticos, concedendo-lhes voz ativa nas decisões de contratação dos servidores. Dessa forma, cria-se um desenho institucional favorável à transformação de planos de governo em políticas públicas tempestivas. 

– Em relação à estrutura do setor público:

Antes da vigência da Lei 19882/2003 o processo de seleção de altos dirigentes funcionava sob os preceitos da administração puramente “burocrática”. O órgão encarregado vinculava-se diretamente à estrutura organizacional do Ministério da Fazenda.

A Lei 20.501 trouxe e adaptou para a educação os benefícios da Lei 19882 (promulgada oito anos antes). A descentralização intragovernamental desencadeada por esse processo manifestou-se fundamentalmente por meio da formação das “comissões qualificadoras”, representativas das instâncias de poder. Essas reformas resultaram em uma maior diversificação organizacional, e concomitantemente reduziram os riscos de captura dos órgãos públicos pelos agentes políticos. A influência da hierarquia de controle dos ministérios e secretarias cedeu terreno à autonomia gerencial e financeira das novas instituições (SADP / CNSC / DNSC). 

– Em relação à prestação alternativa de serviços:

            As escolas subvencionadas privadas, surgida na década de 80, exemplificam um mecanismo de terceirização de serviços. Na década de 90 essas escolas registraram grande aumento de matrículas atendidas, promovendo a expansão das parcerias público-privadas (antes restrita a outros setores da economia) na educação básica[4] chilena. À época da celebração das primeiras parcerias, a ideia consistia em transplantar para as escolas as boas práticas gerenciais observadas no setor privado, partindo-se do princípio de que os agentes privados maximizariam os recursos disponíveis. Contudo, os custos de transação, originados principalmente da assimetria de informação inerentes nesses arranjos (entre órgãos reguladores e setor privado), acarretaram, em alguns casos, a deterioração dos serviços ofertados. Nesse sentido, a gestão pública tem o desafio de aperfeiçoar a capacidade de coordenação de tais arranjos, fazendo valer as regulamentações vigentes junto às escolas subvencionadas (sujeitas a uma normatização diferente das escolas municipais). Os resultados alcançados, ao longo dos últimos anos, ficaram aquém das expectativas iniciais, ensejando no biênio 2015/2016 protestos de parte da população. Não obstante, com a introdução da Lei 20.501, espera-se assegurar o processo de melhoria da qualidade do ensino nas escolas municipais, e, ao mesmo tempo, disseminar pelo sistema as experiências exitosas.      

– Em relação às reformas pelo lado da demanda:

Considerando o conceito de “governo aberto”, que pressupõe maior acesso à informação (transparência) a partir da articulação entre sociedade civil, setor privado e cidadãos, podemos localizar no site do Ministério da Educação um bom exemplo dessa interação social. Nele podem ser encontradas informações detalhadas sobre escolas, grupo de escolas, ou até mesmo sobre a evolução do projeto pedagógico liderado pelo Diretor escolar. A intenção da autoridade educacional chilena, ao disponibilizar por meio de acesso eletrônico informações mais qualificadas à população, consiste em aproximar pais e escolas, além de gerar subsídios mais robustos para o desenvolvimento cognitivo e não cognitivo dos educandos.

Considerações finais

Sistemas de desempenho (gestão) não são um fim em si mesmos, mas podem servir de motivo para os servidores serem mais atentos e comprometidos com os negócios públicos. As reformas, por sua vez, devem convergir para a construção de instituições promotoras de um serviço público profissional, meritocrático e transparente. Do contrário, as políticas públicas prometidas podem minguar, juntamente com a responsividade e desempenho do(s) governo(s), comprometendo, dessa forma, a legitimidade outrora conquistada nas urnas.

A gestão pública da educação no Chile obteve grandes avanços em um curto período de tempo, dada a complexidade das reformas propagadas. Vale ressaltar a importante readequação curricular (ensino básico) realizada entre 1997/2002, que ajudou a pavimentar o caminho para as conquistas até aqui verificadas. Diferente do Brasil, onde Municípios e Estados responsabilizam-se por ciclos educacionais diferentes[5] (o município tem foco no ensino fundamental enquanto o ensino médio é atribuição do Estado), o Chile concentra todo o ciclo do ensino básico nas Comunas (municipalidades). Isto confere mais unicidade à ação educativa, na medida em que o planejamento dos projetos pedagógicos ocorre sob a tutela de uma única dependência administrativa. 

No Brasil, notadamente as secretarias de educação municipais e estaduais, têm empreendido esforços na busca por uma resposta adequada às mudanças impostas por uma conjuntura desfavorável. Percebe-se, em algumas partes do país, o recrutamento de gestores com ênfase na competência técnica, na capacidade de diálogo e na liderança. Apesar de alguns avanços conseguidos, as redes públicas de ensino têm um longo caminho a trilhar. Diversas pesquisas apontam para a longevidade da gestão que, aliada à qualificação contínua, constituem-se em fatores impactantes na aprendizagem dos alunos. Paralelamente, a necessidade de se estabelecer diretrizes consistentes para a seleção de Diretores, conjugando competência técnica ao perfil comportamental desejado, impõe à administração pública a urgência de se definir regras mais claras para a evolução da carreira. Hoje convivemos no Brasil com três formas básicas de seleção: indicação política, eleição pela comunidade e competência técnica (subdividida entre avaliação cognitiva e frequência a cursos de formação). Nessa questão, o estado de Santa Catarina tem logrado importantes melhorias. Lá, conseguiu-se uma mescla profícua entre participação da comunidade e a competência técnica requerida pelo cargo.

Existe ainda muita discussão em diferentes partes do mundo sobre o benefício da adoção de políticas remuneratórias para o gestores/magistério pautadas pelo bônus pecuniário. No Brasil, tempo de serviço e titulações continuam a direcionar as progressões de carreira, porém já existem tentativas na esfera estadual de se introduzir a remuneração por mérito. O bônus é visto muito mais como complemento salarial do que propriamente como uma remuneração variável, amparada no ganho de desempenho. O grande desafio consiste em como avaliar e recompensar adequadamente os servidores de alto desempenho, de maneira a mantê-los continuamente motivados, ao mesmo tempo em que se identificam aqueles com baixo grau de comprometimento e competência. 


[1] 2008, artigo escrito por Nick Manning, Geoffrey Shepherd, Jürgen Blum e Humberto Laudares.

[2] 2002, Claudia Serrano e Heidi Berner, Documento de Trabajo de la Red de Centros / Banco Interamericano de Desarrollo (Corporación de Investigaciones Económicas para Latinoamerica).

[3] Jimenés Asencio, Rafael (2007). La Función Directiva en el Sector Público Español.

[4] Diferente do ensino básico no Brasil, o Ministério da Educação chileno estabelece oito anos sequenciais para o ensino fundamental e quatro anos sequenciais para o ensino médio.

[5] No Brasil existe uma sobreposição entre esferas administrativas – o Estado, em muitos casos, além do ensino médio, também provê ensino fundamental. Isto acaba gerando sobreposições com as administrações municipais (cujo foco é o ensino fundamental), comprometendo a qualidade da educação oferecida nas redes.

Agora você sabe que pode contar conosco!

Fale conosco agora
Mural com fotos de pessoas de diversas faixas etárias
Mural com fotos de pessoas de diversas faixas etárias